Nem todos os livros didáticos que trazem as concepções historiográficas de Eric Hobsbawn, como também alguns cursinhos e professores trabalham pouco com esse historiador, apesar de algumas bancas já o terem utilizado na elaboração de questões.
Outra razão que torna a leitura dessa entrevista obrigatória é a possibilidade da mesma ser cobrada na categoria de atualidade, pois a mesma foi publicada em um jornal de grande circulação que é a Folha de São Paulo. Lembrem-se que as provas de ingresso no Ensino Superior são eliminatórias e a cabeça dos integrantes das bancas, são caixinhas de surpresa.
Boa sorte para todos!
Historiador Eric Hobsbawm aponta questões cruciais do século 21
Aos 92 anos, o historiador britânico Eric Hobsbawm continua um feroz crítico da prevalência do modelo político-econômico dos EUA. Para ele, o presidente americano Barack Obama, ao lidar com as consequências da crise econômica, desperdiçou a chance de construir maneiras mais eficazes de superá-la."Podemos desejar sucesso a Obama, mas acho que as perspectivas não são tremendamente encorajadoras", diz, na entrevista abaixo. "A tentativa dos EUA de exercer a hegemonia global vem fracassando de modo muito visível."Hobsbawm discute ainda questões globais contemporâneas --como as tentativas de criar Estados supranacionais, a xenofobia e o crescimento econômico chinês-- à luz do que expressou em livros como "Era dos Extremos" e "Tempos Interessantes" (ambos publicados pela Cia. das Letras).
Pergunta - "Era dos Extremos" termina em 1991, com um panorama de avalanche global --o colapso das esperanças de avanços sociais globais da era de ouro [segundo Hobsbawm, 1949-73]. Quais são as mudanças mais importantes desde então na história mundial?
Eric Hobsbawm - Vejo quatro mudanças principais. Primeiro, o deslocamento do centro econômico do mundo do Atlântico Norte para o sul e o leste da Ásia. Isso já estava começando no Japão nas décadas de 1970 e 80, mas a ascensão da China desde os anos 1990 vem fazendo uma diferença real.
Pergunta - O que mais o surpreendeu desde então?
Hobsbawm - Nunca deixo de me espantar com a pura e simples insensatez do projeto neoconservador, que não apenas fez de conta que a América fosse o futuro, mas chegou a pensar que tivesse formulado uma estratégia e uma tática para alcançar esse objetivo. Pelo que consigo enxergar, eles não tinham uma estratégia coerente, em termos racionais.
Prakash Karat, seu secretário-geral, disse-me recentemente que o partido se sentiu sitiado e assediado em Bengala Ocidental. E está prevendo sair-se muito mal diante deste novo Congresso nas eleições locais. Isso depois de governar por 30 anos como partido nacional, por assim dizer.
Pergunta - O sr. visualiza qualquer recomposição política do que foi no passado a classe trabalhadora?
Hobsbawm - Não em sua forma tradicional. Marx [1818-83] acertou, sem dúvida, quando previu a formação de grandes partidos de classe em determinado estágio da industrialização. Mas esses partidos, quando foram bem-sucedidos, não operaram puramente como partidos da classe trabalhadora: se queriam estender-se para além de uma classe estreita, o faziam como partidos do povo, estruturados em torno de uma organização inventada pela classe trabalhadora e voltada a alcançar os objetivos dela.
Mesmo assim, havia limites à consciência de classe. No Reino Unido, o Partido Trabalhista nunca conquistou mais de 50% dos votos. O mesmo se aplica à Itália, onde o Partido Comunista era muito mais um partido do povo. Na França, a esquerda era baseada sobre uma classe trabalhadora relativamente fraca, mas que conseguiu se reforçar como sucessora essencial da tradição revolucionária.O declínio da classe operária manual na indústria parece, de fato, ter atingido seu estágio terminal. Ainda restam ou vão restar muitas pessoas fazendo trabalhos manuais, e a defesa das condições de trabalho delas continua a ser uma tarefa importante de todos os governos de esquerda. Mas essa defesa não pode mais ser o alicerce principal das esperanças dessas pessoas: elas não possuem mais potencial político, nem mesmo teoricamente, porque não possuem o potencial de organização da classe operária antiga.
Houve três outras mudanças negativas importantes. Uma delas, é claro, é a xenofobia --que, para a maior parte da classe trabalhadora é, nas palavras usadas certa vez por [August] Bebel, "o socialismo dos tolos": proteja meu emprego contra pessoas que estão competindo comigo.
Em segundo lugar, boa parte da mão de obra e do trabalho nos setores que a administração pública britânica qualificava no passado como "graus menores e manipulativos" não é permanente, mas temporária: são estudantes e migrantes trabalhando com catering [fornecimento de refeições para linhas aéreas, gastronomia hospitalar e cozinhas de navios], por exemplo. Assim, não é fácil enxergá-la como tendo potencial de ser organizada.
A única parte facilmente organizável desse tipo de mão de obra é a que é empregada por autoridades públicas, e isso devido ao fato de essas autoridades serem politicamente vulneráveis.
A terceira e mais importante mudança é, a meu ver, a divisão crescente gerada por um novo critério de classe: a saber, a aprovação em exames de escolas e universidades como critério de acesso a empregos. Pode-se dizer que se trata de uma meritocracia, mas ela é medida, institucionalizada e mediada por sistemas de ensino.
Podem existir meios novos? Não podem mais ser em termos de uma classe única, mas, na minha opinião, isso nunca foi possível. Existe uma política progressista de coalizões, mesmo coalizões relativamente permanentes como as que unem, digamos, a classe média instruída, leitora do "The Guardian", e os intelectuais --os altamente instruídos, que de modo geral tendem a posicionar-se muito mais à esquerda que outros-- e a massa dos pobres e ignorantes.
Os dois grupos são essenciais para um movimento como esse, mas hoje talvez seja mais difícil uni-los do que era antes. É possível, em certo sentido, os pobres se identificarem com os multimilionários, como acontece nos EUA, dizendo "eu só precisaria de sorte para virar popstar". Mas não é possível dizer "bastaria um pouco de sorte para eu virar ganhador do Prêmio Nobel". Isso cria um problema real quando se trata de coordenar as posições políticas de pessoas que, objetivamente falando, poderiam estar do mesmo lado.
Pergunta - Que comparações o sr. traçaria entre a crise atual e a Grande Depressão?
A depressão atual levou mais tempo sendo preparada que a de 1929, que pegou quase todos de surpresa. Deveria ter sido claro desde cedo que o fundamentalismo neoliberal gerou uma instabilidade enorme nas operações do capitalismo. Até 2008, isso pareceu afetar apenas as áreas periféricas --a América Latina nos anos 1990 e no início da década de 2000, o Sudeste Asiático e a Rússia.
Parece-me que o verdadeiro indício de algo grave acontecendo deveria ter sido o colapso da Long-Term Capital Management [fundo de investimentos sediado nos EUA], em 1998, que provou como estava errado o modelo inteiro de crescimento. Mas o incidente não foi visto como tal. Paradoxalmente, a crise levou vários empresários e jornalistas a redescobrirem Karl Marx como alguém que tinha escrito algo interessante sobre uma economia globalizada moderna. Não teve absolutamente nada a ver com a antiga esquerda.
A economia mundial em 1929 era menos global do que é hoje. Isso exerceu algum efeito, é claro --por exemplo, teria sido muito mais fácil então para as pessoas que perderam seus empregos retornarem a suas cidadezinhas de origem.A existência da União Soviética não exerceu efeito concreto sobre a Depressão, mas seu efeito ideológico foi enorme: significava que havia uma alternativa. Desde os anos 1990, temos assistido à ascensão da China e das economias emergentes, fato que vem realmente exercendo um efeito concreto sobre a depressão atual, na medida em que esses países vêm ajudando a manter a economia mundial muito mais equilibrada do que ela estaria sem eles.
Na verdade, mesmo na época em que o neoliberalismo estava supostamente em plena forma, o crescimento real estava ocorrendo em muito grande medida nessas economias em desenvolvimento recente --particularmente na China. Tenho certeza de que, não fosse pela China, a queda de 2008 teria sido muito mais séria.
Não quero tecer especulações sobre o futuro, mas podemos imaginar que, dentro de 20 ou 30 anos, a importância relativa da China no palco mundial será maior do que é hoje --pelo menos econômica e politicamente, mas não necessariamente em termos militares. É claro que o país ainda enfrenta problemas enormes; sempre há pessoas que se perguntam se a China vai conseguir continuar unida. Mas acho que as razões reais e ideológicas para que as pessoas desejem que a China se mantenha unida continuam muito fortes.
Pergunta - Que avaliação o sr. faz da administração [do presidente dos EUA, Barack] Obama?
Mas Obama não o fez. Ele começou mal. Se compararmos os primeiros cem dias de Roosevelt com os primeiros cem dias de Obama, o que salta à vista é a disposição de Roosevelt em aceitar assessores não oficiais, em experimentar algo novo, comparada à insistência de Obama em se conservar no centro. Acho que ele desperdiçou sua chance. Podemos desejar sucesso a Obama, mas acho que as perspectivas não são tremendamente encorajadoras.
Hobsbawm - Na América Latina, com certeza, a política e o discurso público geral ainda são conduzidos nos velhos termos do iluminismo --liberais, socialistas, comunistas. Esses são os lugares onde se encontram militaristas que falam como socialistas --que são socialistas. Encontram-se fenômenos como [o presidente] Lula, baseado em um movimento da classe trabalhadora, e [o presidente boliviano Evo] Morales.
Para onde isso vai levar é outra questão, mas a velha linguagem ainda pode ser falada, e os velhos modos políticos ainda estão disponíveis. Não estou inteiramente certo quanto à América Central, embora existam indícios de um ligeiro "revival" da tradição da revolução no próprio México --não que isso vá muito longe, na medida em que o México já foi virtualmente integrado à economia americana.
Pergunta - O sr. sempre foi crítico do nacionalismo como força política, avisando à esquerda que não deve pintá-lo de vermelho. Mas também se manifestou de modo contundente contra violações de soberania nacional cometidas em nome de intervenções humanitárias. Após a falência dos tipos de internacionalismo nascidos do movimento trabalhista, que tipos são desejáveis hoje?
Hobsbawm - Em primeiro lugar, o humanitarismo, o imperialismo dos direitos humanos, não tem muito a ver com internacionalismo. É indicativo ou de um imperialismo renascido, que encontra nele uma desculpa adequada para cometer violações de soberania de Estados --podem ser desculpas absolutamente sinceras--, ou então, o que é mais perigoso, é uma reafirmação da crença na superioridade permanente da região que dominou o planeta do século 16 até o final do século 20.
Afinal, os valores que o Ocidente procura impor são valores especificamente regionais, não necessariamente universais. Se fossem valores universais, teriam que ser reformulados em termos diferentes. Não creio que estejamos lidando aqui com algo que seja nacional ou internacional em si.
Mas o nacionalismo exerce um papel nisso, sim, porque a ordem nacional baseada em Estados-nações --o sistema westfaliano-- tem sido no passado, para o bem ou para o mal, uma das melhores proteções contra a chegada de elementos externos a países. Não há dúvidas de que, uma vez que ela é abolida, o caminho fica aberto para guerras agressivas e expansionistas --de fato, é por essa razão que os EUA têm criticado a ordem westfaliana.
O internacionalismo significava que, como católico, você acreditava nos mesmos dogmas e participava das mesmas práticas, não importa quem você fosse ou onde vivesse. O mesmo acontecia, teoricamente, com os partidos comunistas. Em que medida isso realmente aconteceu, e em que estágio deixou de acontecer --mesmo dentro da Igreja Católica--, é outra questão. Não é realmente isso o que queríamos dizer com "internacionalismo".
O Estado-nação foi e continua a ser o quadro em que são tomadas todas as decisões políticas, domésticas e externas. Até muito recentemente, as atividades dos partidos trabalhistas --na verdade, todas as atividades políticas-- eram conduzidas quase inteiramente dentro do contexto de um Estado.Mesmo dentro da UE [União Europeia], a política ainda é articulada em termos nacionais. Em outras palavras, não existe um poder de ação supranacional --apenas Estados separados formando uma coalizão.
Hobsbawm - Economicamente e na maioria dos outros aspectos --inclusive culturalmente, até certo ponto--, a revolução das comunicações criou um mundo genuinamente internacional, no qual há poderes de decisão que se transnacionalizam, atividades que são transnacionais e, é claro, movimentos de ideias, comunicações e pessoas que são mais facilmente transnacionais do que jamais antes.
Mesmo as culturas linguísticas hoje são suplementadas por expressões idiomáticas das comunicações internacionais. Na política, contudo, não se vê nenhum sinal de que isso esteja acontecendo, e é essa a contradição básica no momento.
Hobsbawm - Não há dúvida alguma de que o nacionalismo foi, em grande medida, parte do processo de formação dos Estados modernos, que exigiu uma forma de legitimação diferente da do Estado tradicional teocrático ou dinástico. A ideia original do nacionalismo era a criação de Estados maiores, e me parece que essa função unificadora e de expansão foi muito importante.
A função histórica de criar uma nação como Estado-nação deixou de ser a base do nacionalismo. Pode-se dizer que não é mais um slogan muito convincente. Pode ter sido eficaz, no passado, como meio de criar comunidades e organizá-las contra outras unidades políticas ou econômicas.
Hoje, porém, o fator xenofóbico do nacionalismo é cada vez mais importante. Quanto mais a política foi democratizada, maior foi o potencial para isso. As causas da xenofobia são muito maiores do que eram no passado. Trata-se de algo muito mais cultural que político --basta pensar na ascensão do nacionalismo inglês ou escocês nos últimos anos--, mas nem por isso menos perigoso.
Hobsbawm - O fascismo ainda foi, até certo ponto, parte da investida para criar nações maiores. Não há dúvida de que o fascismo italiano foi um grande passo à frente na conversão de calabreses e úmbrios em italianos; e mesmo na Alemanha, foi apenas em 1934 que os alemães puderam ser definidos como alemães, e não alemães pelo fato de serem suábios, francos ou saxões.
É verdade que os fascismos alemão e europeu central e oriental foram acirradamente contrários a outsiders --judeus, em grande medida, mas não apenas eles. E, é claro, o fascismo forneceu uma garantia menor contra os instintos xenofóbicos.
Uma das vantagens enormes dos movimentos trabalhistas antigos era que eles forneciam essa garantia. Isso ficou muito claro na África do Sul: não fosse pelo compromisso das organizações de esquerda tradicionais com a igualdade e a não discriminação, teria sido muito mais difícil resistir à tentação de cometer atos de vingança contra os africânderes.
Pergunta - O sr. destacou as dinâmicas separatistas e xenofóbicas do nacionalismo. O sr. vê isso como algo que hoje atua nas margens da política mundial, e não no teatro principal dos acontecimentos?
Hobsbawm - Sim, acho que isso é provavelmente certo --embora existam regiões em que o nacionalismo causou danos enormes, como no sudeste da Europa. Ainda é verdade, é evidente, que o nacionalismo --ou o patriotismo, ou a identificação com um povo específico, que não precisa necessariamente ser definido por critérios étnicos-- seja um enorme fator de legitimação dos governos.Isso é claramente o caso na China. Um dos problemas da Índia, hoje, é que não existe nada exatamente assim por lá. Os EUA, obviamente, não podem ser definidos por uma unidade étnica, mas certamente têm sentimentos nacionalistas fortes.
Pergunta - Como o sr. prevê a dinâmica social da imigração contemporânea hoje, num momento em que tantos migrantes chegam anualmente à UE e aos EUA? O sr. prevê a emergência gradual de outro caldeirão cultural na Europa, não dessemelhante ao americano?
É possível continuar vivendo em dois, possivelmente até três, mundos ao mesmo tempo, e a identificar-se com dois ou três lugares distintos. É possível continuar a ser guatemalteco mesmo vivendo nos EUA. Também há situações como as da UE, nas quais, concretamente, a imigração não gera a possibilidade de assimilação. Um polonês que vem para o Reino Unido não é visto como nada além de um polonês que vem trabalhar no país.
Isso é claramente novo e muito diferente da experiência de pessoas da minha geração, por exemplo --a geração dos emigrados políticos, não que eu tenha sido um--, na qual nossa família era britânica, mas culturalmente nunca deixávamos de ser austríacos ou alemães; mas, apesar disso, acreditávamos realmente que deveríamos ser ingleses.
Mesmo quando um desses emigrados retornasse a seu próprio país, mais tarde, não era exatamente a mesma coisa --o centro de gravidade tinha se deslocado. Sempre há exceções: o poeta Erich Fried [1921-88], que viveu em Willesden (zona noroeste de Londres) por 50 anos, continuou, de fato, a viver na Alemanha.
Acredito realmente que é essencial conservar as regras básicas da assimilação --que os cidadãos de um país particular devem comportar-se de determinada maneira e gozar de determinados direitos, e que esses comportamentos e direitos devem defini-los, e que isso não deve ser enfraquecido por argumentos multiculturais.
A França havia, apesar de tudo, integrado mais ou menos tantos de seus imigrantes estrangeiros quanto os EUA, relativamente falando, e, mesmo assim, o relacionamento entre os locais e os ex-imigrantes é quase certamente melhor lá. Isso acontece porque os valores da República Francesa continuam a ser essencialmente igualitários e não fazem nenhuma concessão pública real.
Seja o que for que você faça no âmbito pessoal -- era também esse o caso nos EUA no século 19--, publicamente esse é um país que fala francês. A dificuldade real não será tanto com os imigrantes quanto com os locais. É em lugares como Itália e Escandinávia, que não tinham tradições xenofóbicas prévias, que a nova imigração vem criando problemas sérios.
Hobsbawm - Está claro que a religião --entendida como a ritualização da vida, a crença em espíritos ou entidades não materiais que influenciariam a vida e, o que não é menos importante, como um elo comum entre comunidades-- está tão amplamente presente ao longo da história que seria um equívoco enxergá-la como fenômeno superficial ou que esteja destinado a desaparecer, pelo menos entre os pobres e fracos, que provavelmente sentem mais necessidade de seu consolo e também de suas potenciais explicações do porquê de as coisas serem como são.
Existem sistemas de governo, como o chinês, que não possuem concretamente qualquer coisa que corresponda ao que nós consideraríamos ser religião. Eles demonstram que isso é possível, mas acho que um dos erros do movimento socialista e comunista tradicional foi optar pela extirpação violenta da religião em épocas em que poderia ter sido melhor não fazê-lo. Uma das grandes transformações interessantes advindas após a queda de Mussolini na Itália foi quando [Palmiro] Togliatti [secretário-geral do Partido Comunista Italiano] deixou de discriminar os católicos praticantes --e com razão.
De outro modo, ele não teria conseguido que 14% das donas de casa votassem nos comunistas na década de 1940. Isso mudou o caráter do Partido Comunista Italiano, que passou de partido leninista de vanguarda a partido classista de massas ou partido do povo.
Por outro lado, é verdade que a religião deixou de ser a linguagem universal do discurso público; e, nessa medida, a secularização vem sendo um fenômeno global, embora apenas em algumas partes do mundo ela tenha enfraquecido gravemente a religião organizada.
Para as pessoas que continuam a ser religiosas, o fato de hoje existirem duas linguagens do discurso religioso gera uma espécie de esquizofrenia, algo que pode ser visto com bastante frequência entre, por exemplo, os judeus fundamentalistas na Cisjordânia --eles acreditam em algo que é evidentemente tolice, mas trabalham como especialistas nisso.
O movimento islâmico atual é composto, em grande medida, por jovens tecnólogos e técnicos desse tipo. Com certeza, as práticas religiosas vão mudar muito substancialmente. Se isso vai realmente produzir uma secularização maior não está claro. Por exemplo, não sei até que ponto a grande mudança na religião católica no Ocidente --ou seja, a recusa das mulheres em pautar-se pelas normas sexuais-- realmente levou as mulheres católicas a serem menos crentes.O declínio das ideologias do iluminismo deixou um espaço político muito maior para a política religiosa e as versões religiosas de nacionalismo. Mas não creio que todas as religiões tenham vivido uma ascensão grande. Muitas delas estão claramente em declínio.
O catolicismo está lutando arduamente, mesmo na América Latina, contra a ascensão de seitas evangélicas protestantes, e tenho certeza de que está se mantendo na África apenas graças a concessões aos hábitos e costumes sociais que eu duvido que tivessem sido feitas no século 19.As seitas evangélicas protestantes estão em ascensão, mas não está claro até que ponto são mais que uma minoria pequena entre os setores sociais com mobilidade ascendente, como era o caso antigamente com os não conformistas na Inglaterra. Tampouco está claro que o fundamentalismo judaico, que causa tanto mal em Israel, seja um fenômeno de massas.
A única exceção é o islã, que vem continuando a se expandir sem nenhuma atividade missionária efetiva nos últimos dois séculos. Dentro do islã, não está claro se tendências como o movimento militante atual pela restauração do califado representam mais que uma minoria ativista. Contudo, me parece que o islã possui grandes trunfos que favorecem sua expansão contínua --em grande medida, porque confere às pessoas pobres o sentimento de que valem tanto quanto todas as outras e que todos os muçulmanos são iguais.
Pergunta - Não se poderia dizer o mesmo do cristianismo?
A estrutura do islã é mais igualitária, e o elemento militante é mais forte no islã.Recordo-me de ter lido que os mercadores de escravos no Brasil deixaram de importar escravos muçulmanos porque eles insistiam em rebelar-se sempre. Onde estamos, esse apelo encerra perigos consideráveis --em certa medida, o islã deixa os pobres menos receptivos a outros apelos por igualdade.
Os progressistas no mundo muçulmano sabiam desde o início que não haveria maneira de afastar as massas do islã; mesmo na Turquia, tiveram que encontrar alguma forma de convivência --aliás, esse foi provavelmente o único lugar onde isso foi feito com êxito.
Pergunta - A ciência foi uma parte central da cultura da esquerda antes da Segunda Guerra, mas, ao longo das duas gerações seguintes, virtualmente desapareceu como elemento central do pensamento marxista ou socialista. O sr. acha que o destaque crescente das questões ambientais deverá reaproximar a ciência da política radical?
Hobsbawm - Tenho certeza de que os movimentos radicais vão se interessar pela ciência. O ambiente e outras preocupações geram razões fundamentadas para combater a fuga da ciência e da abordagem racional aos problemas, fuga que se tornou bastante ampla a partir dos anos 1970 e 80. Mas, com relação aos próprios cientistas, não creio que isso vá acontecer.
Diferentemente dos cientistas sociais, não há nada que leve os cientistas naturais a se aproximarem da política. Historicamente falando, eles, na maioria dos casos, têm sido apolíticos ou seguiram a política padrão de sua classe.Existem exceções --entre os jovem na França do início do século 19, digamos, e, muito notavelmente, nas décadas de 1930 e 1940. Mas esses são casos especiais, que se devem ao reconhecimento por parte dos próprios cientistas de que seu trabalho estava se tornando cada vez mais essencial para a sociedade, mas que a sociedade não se dava conta disso.
O trabalho crucial sobre isso é "The Social Function of Science" [A Função Social da Ciência, MIT Press], de [J.D.] Bernal, que exerceu efeito enorme sobre outros cientistas. É claro que o ataque deliberado de Hitler contra tudo o que a ciência representava ajudou.
No século 20, as ciências físicas estiveram no centro do desenvolvimento, enquanto no século 21 está claro que são as ciências biológicas que estão. Pelo fato de estarem mais próximas da vida humana, pode haver um elemento de politização maior. Mas há um fato contrário, com certeza: cada vez mais, os cientistas têm sido integrados ao sistema do capitalismo, tanto como indivíduos quanto no interior de organizações científicas.
Quarenta anos atrás, teria sido impensável alguém falar em patentear um gene. Hoje, patenteia-se um gene na esperança de virar milionário, e esse fato afastou um grupo bastante grande de cientistas da política da esquerda. A única coisa que ainda poderá politizá-los é a luta contra governos ditatoriais ou autoritários que interferem em seu trabalho.
Um dos fenômenos mais interessantes na União Soviética foi que os cientistas lá foram forçados a se politizar, porque receberam o privilégio de um certo grau de direitos e liberdades --de tal maneira que pessoas que, de outro modo, não teriam passado de leais fabricantes de bombas de hidrogênio se tornaram líderes dissidentes.
Hobsbawm - Isso surgiu a partir de duas coisas. Quando percorri a Itália na década de 1950, eu não parava de topar com fenômenos aberrantes --representações partidárias no sul do país elegendo testemunhas de Jeová como secretários, e assim por diante; pessoas que refletiam sobre problemas modernos, mas não nos termos aos quais estávamos acostumados.
Em segundo lugar, especialmente após 1956, isso expressava uma insatisfação geral com a versão simplificada que tínhamos do desenvolvimento de movimentos populares da classe trabalhadora.
Em "Rebeldes Primitivos", eu estava muito longe de ser crítico da leitura padrão-- pelo contrário, eu observava que esses outros movimentos não chegariam a nenhum lugar a não ser que, mais cedo ou mais tarde, adotassem o vocabulário e as instituições modernas.
A despeito disso, ficou claro para mim que não bastava simplesmente ignorar esses outros fenômenos, dizer que sabíamos como todas essas coisas operam. Eu produzi uma série de ilustrações desse tipo, estudos de caso, e disse: "Estes não se encaixam".
Isso me levou a pensar que, antes mesmo da invenção do vocabulário, dos métodos e das instituições políticas modernas, existiam maneiras como as pessoas praticavam política que englobavam ideias básicas sobre as relações sociais --entre elas, em grau não menor, as relações entre poderosos e fracos, governantes e governados-- que possuíam uma certa lógica e se encaixavam.Mas eu realmente não tive oportunidade de levar esse estudo adiante.
Pergunta - Em "Tempos Interessantes" [publicado em 2002], o sr. expressou reservas consideráveis em relação ao que eram na época modismos históricos recentes. O sr. acha que o cenário historiográfico continua relativamente inalterado?
Hobsbawm - Estou cada vez mais impressionado com a escala do desvio intelectual verificado na história e nas ciências sociais desde os anos 1970. Minha geração de historiadores, que de modo geral transformou o ensino da história, além de muitas outras coisas, procurou essencialmente estabelecer um vínculo permanente, uma fertilização mútua, entre a história e as ciências sociais; era um esforço que datava dos anos 1890.
A disciplina econômica seguiu uma trajetória diferente. Dávamos como certo que estávamos falando de algo real: de realidades objetivas, embora, desde Marx e a sociologia do conhecimento, soubéssemos que as pessoas não registram a verdade simplesmente como ela é.
Em algum momento da década de 1970, ocorreu uma mudança acentuada. Em 1979-80 a [revista de história] "Past & Present" publicou uma troca de ideias entre Lawrence Stone e mim sobre o "revival da narrativa" --"o que está acontecendo com as grandes perguntas 'por quê'?". De lá para cá, as grandes perguntas transformativas vêm sendo esquecidas pelos historiadores, de maneira geral.
Ao mesmo tempo, ocorreu uma expansão enorme do âmbito da história --passou a ser possível escrever sobre qualquer coisa que se quisesse: objetos, sentimentos, práticas. Parte disso era interessante, mas também se viu um aumento enorme do que se poderia chamar de história de fanzine, na qual grupos escrevem com o objetivo de se sentirem mais positivos a seu próprio respeito.
O exemplo clássico disso é o dos indígenas americanos que se recusaram a acreditar que seus ancestrais tivessem migrado da Ásia, afirmando "sempre estivemos aqui".
Boa parte desse desvio foi político, em algum sentido. Os historiadores oriundos de 1968 não se interessavam mais pelas grandes perguntas --pensavam que todas já tinham sido respondidas. Estavam muito mais interessados nos aspectos voluntários ou pessoais. O [periódico] "History Workshop" foi um desenvolvimento tardio desse tipo.
Não acho que os novos tipos de história tenham produzido quaisquer mudanças dramáticas. Na França, por exemplo, a história pós-Braudel não se compara à que foi feita pela geração dos anos 1950 e 1960. Pode haver trabalhos ocasionais muito bons, mas não é a mesma coisa. E estou inclinado a pensar que o mesmo pode ser dito do Reino Unido. Houve um elemento de antirracionalismo e de relativismo nessa reação dos anos 1970, que, ao todo, constatei ser hostil à história.
O livro "A Europa e os Povos Sem História" [Edusp], de Eric Wolf, é um exemplo de uma mudança positiva nesse respeito.Também ocorreu uma ascensão enorme da história global. Entre não historiadores tem havido muito interesse pela história geral --ou seja, em como a raça humana começou. Graças a pesquisas de DNA, hoje sabemos muita coisa sobre a expansão de humanos através do planeta. Em outras palavras, dispomos de uma base genuína para uma história mundial.
Hobsbawm - O grande problema é um problema muito geral. Segundo padrões paleontológicos, a espécie humana transformou sua existência com velocidade espantosa, mas o ritmo das transformações tem variado tremendamente. Isso claramente indica um controle crescente sobre a natureza, mas não devemos imaginar que sabemos para onde isso nos está conduzindo.
Os marxistas focaram, com razão, as transformações no modo de produção e em suas relações sociais como sendo geradoras de transformações históricas.
Esta entrevista foi publicada originalmente na edição de janeiro/fevereiro da revista britânica "New Left Review".
Tradução de Clara Allain.